De onde viemos? Origens.
- Liana Rosemberg
- 8 de jul. de 2022
- 11 min de leitura
O HOMEM COMO FORMA IDEAL
A particularidade de determinadas formas que reaparecem em diferentes períodos da História da Arte nos seduz e surpreende, portanto, propomos uma análise do ressurgimento da imagem da figura humana, concebida e criada como forma idealizada pelo artista a partir de um jogo sutil de proporções no classicismo grego, perpetuada no decorrer dos séculos e aqui apresentada como uma metodologia aplicável ao ensino da História da Arte.
A atenção centrada sobre um tipo de homem o cidadão grego , o tipo humano mais completo estabeleceu os limites da arte clássica do século V. a.c. Através da estátua nua de um atleta O Doríforo, o lanceiro (44 a.c. - 199 cm.). Policleto de Argos concretizou os valores morais da aristocracia e o princípio da kalokagathia preconizando uma construção teórica do corpo humano: "cabeça é a sétima parte da altura da figura, o pé três vezes o comprimento da palma da mão; a perna do pé ao joelho medirá 6 palmos e a mesma medida existirá entre o joelho e o centro do abdômen''.
A pose traduz uma atitude rítmica intermediária entre ação e imobilidade, num equilíbrio calculado. A ideia do contrapposto é introduzida através dos contrastes entre o torso contraído de um lado e descontraído do outro e pela alternância de membros tensos e relaxados conferindo ao atleta um equilíbrio calculado
É a figura do herói, o protótipo do homem pensado matematicamente, criada dentro de uma proporção ideal. Torna-se a forma ideal, concretização do princípio do belo - kalogathia – a essência.
A força que esta imagem possui levou a sua perpetuação. O artista, ao criar uma imagem semelhante ao homem, mas idealizada, compete com o Senhor do Universo, torna-se um demiurgo.
O Doríforo

A arte clássica romana apreendeu o encantamento do classicismo grego, mas preservou as características particulares do indivíduo. O Doríforo serviu de modelo a estátua do imperador Augusto - Prima Porta - (19 a.c. - 204 cm) discursando às suas tropas.
Estátua do Imperador Romano Caio Júlio Cesar Otaviano Augusto (63 a.C. - 14 d.C.) governou 27a.C- 14 d.C Augusto Prima Porta .

Augusto Prima Porta
O modelo imperial foi vestido com uma couraça esculpida e ajustada a anatomia visível do torso e uma capa vigorosamente esculpida nas dobras . A cabeça foi modificada para captar as feições reais de Augusto, embelezadas para refletir a pureza das formas do Doríforo, foi erguida e ligeiramente virada para a esquerda a olhar para a frente sobranceira. Ao imperador cabia dominar os espectadores à sua frente, o braço foi levantado numa posição de comando. Augusto, pelo olhar e pelo gesto, controla o espaço à sua frente. A estátua estaria em um nicho, a ênfase se concentra na vista frontal, razão provável para o desinteresse no contrapposto. O equilíbrio interno e o ritmo contido da estátua clássica transformaram-se num novo ritmo capaz de captar a autoridade da figura imperial orgulhosa de Caio Otávio, o salvador da República romana, que alcançou a Pax Romana , a quem o Senado conferiu o título de Augusto (escolhido dos deuses) o protótipo do herói romano.
Detalhe da couraça de Augusto Prima Porta

Na couraça imagens do rei do céu e do rei sol
Indicando a presença divina e excelente peça de propaganda comunicando a poderosa presença
do Cesar .
A redescoberta e revelação do amor grego à beleza física, à natureza e aos ideais da polis , contribuiu para que uma nova consciência do próprio homem surgisse no Renascimento.
A estátua "Davi" de Miguel Ângelo (1501/4 - 4.34m) refere-se ao herói bíblico, adolescente, pastor de ovelhas , que vence, o gigante filisteu Golias bem armado, com o golpe de uma pedra lançada por sua funda. A figura é um colosso nu, plena de tensão embora pareça calma.
Miguel Angelo (101-1504) Galeria de Belas Artes

Mas , está pronta para a ação. O tratamento do corpo é excepcional. Em lugar de acentuar as forças vibrantes pelo ritmo das formas, o artista busca reproduzir a estrutura anatômica através da riqueza e precisão dos detalhes, diferenciação dos ossos, músculos e partes macias. Na natureza cada parte do corpo humano, através de sua forma mesmo estática , sugere sua função, o artista ao reproduzir a estrutura do ser humano em repouso indica a virtualidade da ação. O braço direito caído , ao longo do corpo , evoca sua força e possibilidades cinéticas graças a seus músculos e veias bem delineados e pelo tamanho da mão. O rosto jovem se mostra tenso, testa franzida e uma ruga. Seria ele um instrumento do Senhor?
O Davi é uma figura idealizada a partir do pleno conhecimento anatômico, não é figura utópica. É também a encarnação da “Fortezza” (força) virtude cívica , doutrina que exalta a luta pela defesa da pátria completada pela Ira , doutrina da paixão da cólera , virtude que impulsiona as forças morais do homem corajoso. O Davi é a encarnação das duas virtudes cívicas do Renascimento , identificando-se com Hércules, símbolo da força na Antiguidade Clássica e desde o século XIII patrono e protetor de Florença. O David pode ser considerado como a síntese dos ideais do Renascimento florentino: na anatomia precisa reconhecemos o espírito de investigação científica dos florentinos, nas formas cheias de força e no rosto altivo encontramos a concepção heroica do homem como criatura livre, senhor do seu destino.
Detalhe da mão

Detalhe da cabeça

A arte do século XIX se caracteriza pela influência exercida pelas formas de séculos anteriores e pelas teorias estéticas , científicas ou sociais. No Neoclassicismo do início do século ocorreu um Revivel (revivência) da Antiguidade Clássica graças a: vinculação dos artistas franceses com a Academia de Roma , as teorias estéticas de Winckelmann propondo um amplo conhecimento da Antiguidade pelo estudo da arte clássica; a peregrinação de viajantes pela Grécia e Itália e posteriores publicações difundindo seus conhecimentos e os achados arqueológicos de Herculano e Pompéia. A escultura refletiu o interesse pelo mundo clássico e o retrato adquiriu importância neste momento artístico.
Escolhemos o retrato ideal de Napoleão Bonaparte realizado por Antonio Canova chamado para retratar o primeiro consul em 1802. A estátua monumental retrata Napoleão nu, uma tradição na França , bastando recordar de Pigalle na imagem de Voltaire nu sentado sobre rochas , olhando o céu e de Houdon que tornou o gênero aceitável ao heroicizar a nudez.
Jean Baptiste Pigalle
Voltaire nu

Jean Antoine Houdon Um Estudo

Napoleão hostilizado na Escola Militar por ser originário da Córsega , pobre , mal vestido torna-se general aos 24 anos e pelas suas brilhantes vitórias , imperador dos franceses sonhando fazer da França uma grande nação. É o grande herói do século XIX.
Antonio Canova(1757-1821) Napoleão Bonaparte
O Pacificador (1802/06) Pinacoteca de Brera

Canova o retratou como um herói clássico, um Aquiles. O ponto de referência foi o Doríforo na nudez, no contraposto e no equilíbrio da figura. Na pose lembra a estátua de Augusto, o braço erguido segurando a lança ou bastão de comando, no manto dobrado sobre o braço. Canova aliou o retrato realístico da cabeça com as feições de Napoleão com a figura derivada da Antiguidade. Combinação embaraçante, mas Canova tornara-se um renitente adorador de heróis e acreditara que as feições de Napoleão eram próprias não só a escultura , mas adaptavam-se ao estilo heroico que tinha em mente.
Detalhe da cabeça e do globo terrestre com a figura simbólica da vitória pousada

A figura em movimento com a longa lança lembra a "Regra Helenítica" da Antiguidade , e o globo apoiado na sua mão com uma figura da vitória inspirada em representações antigas ,simboliza as conquistas napoleônicas. Esta estátua é o ''glorificat'' do pequeno caporal que amava os romanos e suas conquistas.
Analisemos a ocorrência da idealização da forma no Brasil, e os fatos que contribuíram para sua existência.
Afora o rudimentar ensino mais dos ofícios que das artes ministrado pelas instituições religiosas a índios e negros nos primórdios da nossa existência, e dos conhecimentos de desenho arquitetônico e de engenharia necessários a atividade militar ministrados na “Real Academia do Rio de Janeiro” em 1793 não havia difusão e fixação da arte através de seu ensino sistemático. A presença das criações artísticas no Brasil nos séculos XVII XVIII foram geralmente ligadas ao culto religioso.
Data de 1800 a primeira medida para um ensino artístico especializado, estabeleceu-se a "Aula Pública de Desenho e Figura" por carta régia de Portugal e onde o modelo vivo nem sempre correspondia às belas figuras reproduzidas no papel , fruto da imaginação e não da cópia da realidade. Em 1808 com a invasão de Portugal pelas tropas de Napoleão a corte portuguesa transferiu-se para o Brasil. O príncipe regente D. João VI por necessidade de sobrevivência de seus domínios procurou moderniza-los através de benfeitorias como a abertura dos portos ao comércio fundação da Impressão Régia , livraria pública , hospitais , Banco do Brasil , construção de estradas e melhoria da Cidade do Rio de Janeiro agora capital do Reino. Mereceu-lhe atenção a falta de uma escola de aprendizagem artística e técnico profissional decidindo-se pela contratação de um grupo de artífices e artistas.
Coube ao erudito D. Antonio de Araújo de Azevedo Conde da Barca, pertencente a corrente francesa do primeiro ministério organizado no Brasil contratar um grupo de insignes e famosos artistas franceses que sendo bonapartistas , com a Restauração dos Bourbons , buscavam local de exílio onde pudessem trabalhar. Este grupo chamou-se Missão Artística Francesa e aportou em 1816 no Brasil trazendo os ideais da estética neoclássica . Era constituída por um quadro superior artístico e outro de artes mecânicas . Após inúmeras dificuldades em 1820 foi criada a “Real Academia de Desenho , Pintura e Escultura e Arquitetura Civil” com alguns professores da Missão , passando a existir uma estrutura e corpo docente de um organismo educativo atualizado.
Finalmente, em 1826, no prédio construído segundo projeto do arquiteto da Missão Grandjean de Montigny foi instalada a “Academia Imperial de Belas Artes”, cujos estatutos , definidos pelos mestres franceses , estabeleciam uma orientação neoclássica ao ensino e prêmios com a finalidade de estimular os alunos. Algumas reformas foram posteriormente realizadas: instituição da Exposição Geral de Belas Artes em 1840 , organização da Pinacoteca da Academia , instituição do prêmio de viagem em 1845 , para estudos na Academia Francesa em Paris e Roma. Podemos acrescentar que o apogeu do neoclassicismo se situa na segunda metade do século XIX , nos seus representantes brasileiros formados sob as lições da missão artística de 1816, como é o caso do escultor Francisco Manuel Chaves Pinheiro cuja obra analisaremos.
No ensino de desenho da Academia a cópia das moldagens de gesso de figuras e peças ornamentais greco-romanas era fundamental como atestam as exposições de trabalhos de alunos realizadas a partir de 1828. As moldagens são peças reproduzidas a partir da cópia fiel da estatuária e ornamentos originais pertencentes ao Museu do Louvre e da Academia de Belas Artes da França , possuindo portanto um selo indicativo da autorização para sua reprodução.
Em algumas peças , pertencentes hoje ao Museu Nacional de Belas Artes do Rio de Janeiro , observa-se o selo de reprodução do Museu Imperial de Napoleão , indicando que talvez as primeiras moldagens tenham vindo com membros da Missão . Os mais antigos documentos conhecidos relacionados com as aquisições de moldagens pela Academia são a Ata do Corpo Acadêmico de 1837 que relata a compra da coleção de gessos do escultor e professor Marc Ferrez , e a fala da sessão pública quando professores resolvem a compra de nova coleção de gesso indispensável à classe de escultura. Outras aquisições foram realizadas em 1860/ 1863 tendo o Imperador Pedro II concorrido pessoalmente para o aumento da coleção de moldagens.
O catálogo da exposição de 1859 ao destacar a numerosa e valiosa coleção de 151 moldagens de gesso e a preocupação de Morales de los Rios, arquiteto do novo prédio construído após a Proclamação da República em 1889 , para a então Escola Nacional de Belas Artes em 1906/8, em projetar duas galerias chamadas de Museu da Escultura para exibir e guardar estas moldagens atestam sua importância. A sua utilização no ensino estabeleceu uma pedagogia de olhar de estética neoclássica que perdurou até cerca de 1930.
Belmiro de Almeida (1887) Arrufos

Pedro Americo Fausto e Margarida

Ao tornar-se independente em 1822 o Brasil transformou-se numa monarquia constitucional modelada ao estilo francês de Luís Felipe. A “intelligentsia” brasileira esquece a sua realidade e busca moldes literários, artísticos e filosóficos na Europa. À França pediu-se figurinos literários e filosóficos , à Inglaterra o ritual parlamentarista à Alemanha a partir de 1870 as novas orientações cientificas.
O advento da Independência e sua febre nacionalista iria coincidir com importação das novas ideias românticas e o Brasil marcado influência do pensamento europeu , empreenderá sua carreira intelectual e política sob o signo do romantismo. O romantismo aparece definido na literatura , mas corresponde a um momento histórico do Brasil que , na história de suas ideias traduz a influência francesa. O romantismo traduz a consciência nacional e o espírito de brasilidade iniciando um processo de interpretação da realidade do país.
O Índio, o elemento brasileiro puro, passou a ser considerado o símbolo do herói brasileiro. Surgiu na literatura além das características próprias do Romantismo europeu a corrente indianista em poemas épicos como os de Gonçalves Dias (1823-1864) onde o selvagem é idealizado como expressão do nacionalismo , símbolo do espírito e civilização brasileira e em romances indianistas como os de José de Alencar (1829-1877) onde o Índio idealizado é uma figura de nítido contorno rousseauniano, o “beau sauvage” que age e fala como um homem educado, herói e cavaleiro andante. Nas artes plásticas a tendência romântica se observa na temática, de inspiração nativista, mas , que quanto ao sentimento continua europeu preso as convenções e à estética neoclássica na forma e nas cores.
Escolhemos uma escultura de Francisco Manuel Chaves Pinheiro, que estudou na Imperial Academia com Marc Ferrez a partir de 1833. Tornou-se professor de escultura em 1852 lecionando até sua morte em 1884. Deixou inúmeras obras e participou de diversas exposições: 1845 (medalha de ouro); 1846, 1850 e 1859 quando foi condecorado como Cavaleiro da Ordem Imperial da Rosa.
Manuel Chaves Pinheiro
O Indio (alegoria ao Império Brasileiro)

Esta obra é uma terra-cota de 1,92 m de altura . Chama-se O Índio (alegoria ao Império Brasileiro) e encontra-se no acervo do Museu Nacional de Belas Artes e data de 1872. A obra é mais que uma alegoria é uma exaltação ao Império. A figura apresenta-se desnuda, de pé e diferencia-se das anteriores , por não apresentar contrapposto, embora seja extremamente equilibrada. A tanga e o cocar de penas são atributos indígenas , possuindo duplo significado simbólico: de força ascensional e crescimento vegetal. O cocar, coroa de penas que o adorna lembra a coroa de raios de sol, auréola reservada aos seres predestinados, o Índio é na verdade um cacique, o senhor da tribo. O manto sobre seus ombros é um atributo real, confirma sua autoridade, vesti-lo indica a escolha da sabedoria, dignidade e justiça , e o identifica com a ideia de nação da qual é parte e contribui. Uma de suas mãos segura um escudo com as armas do Império Brasileiro símbolo de armas de proteção, defesa, como o escudo de Aquiles , onde se concentram e se mobilizam os símbolos da razão de viver, belezas do universo , força, riqueza e satisfação elementos de uma nação. Com a outra mão segura um cetro com a figura do dragão, escudo dos Bragança, a casa real brasileira. O cetro é prolongamento do braço, signo de autoridade e poder e o dragão , símbolo do imperador associado ao raio e a fertilidade, manifestação das funções reais e ritmos da vida que garantem a ordem, a prosperidade.
Dentro do espírito romântico o selvagem idealizado é a encarnação da civilização brasileira , representa o sentimento nativista do herói brasileiro , defendido pelo poder do Imperador e o defendendo. A figura se mostra altaneira, senhora de si.
Pelos exemplos pode-se concluir que o herói nunca corresponde à realidade, não é humano, é sempre sobre-humano, uma idéia.
Super Homem

O grande mito pop, nascido na época da Depressão , de 1929 , o herói Super-Homem, o Homem de Aço teve sua morte decretada pela D. C. Comics. O assassino é um ser interplanetário de nome Doomsday o apocalipse. O Super Homem , na verdade criado para ser imortal não resistiu a sociedade capitalista que o gerou. A lei do mercado destruiu o indestrutível. Umberto Eco nos anos 60 escreveu um ensaio no qual sustentava a curiosa tese de que o Super-Homem padeceria de uma duplicidade típica de nossa sociedade , um sujeito frustrado que no seu cotidiano que necessita imaginar dentro de si um herói , pois os pobres mortais não poderiam derrotar o mal, mas o Super-Homem com super-poderes poderia. Talvez este fato explique o atual culto ao corpo, os heróis do cinema - Arnold Schwarzenegger e Stallone.
Doomsday ( apocalipse)

Arnold Schwarzenegger

O homem de hoje, através da beleza do corpo trabalhado, quem sabe possa se ver como um Super-Homem ou sonhar dentro das limitações impostas pela sociedade. Hoje parece-nos que é a imagem cinematográfica de um Exterminador do Futuro o protótipo da ideia da forma humana ideal o que poderia explicar a moda das academias de exercícios físicos. Busca-se o herói , mas que tipo de herói? O fabricado pela mídia , portanto universal , ou optaríamos por uma volta ao herói de origem grega?
Sylvester Stallone

Exterminador do futuro ????

Busca-se o herói , mas que tipo de herói? O fabricado pela mídia , portanto universal , ou optaríamos por uma volta ao herói de origem grega?
Prof. Dr. ROSEMBERG, Bergstein, Liana Ruth, Professor Adj
Universidade do Estado do Rio de Janeiro-UERJ
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